Uma coisa é certa: a antiga ordem mundial bipolar está naufragada. Alguns dizem: hoje temos uma ordem multipolar. Eu, no entanto, penso que o mundo não é nem bipolar, nem multipolar – ele é não-polar. Uma nova ordem ainda não se encontrou. Este mundo é um mundo em busca.

Dr. Frank-Walter Steinmeier,
Ministro das Relações Exteriores da Alemanha em discurso em setembro de 2014

Foi como uma grande onda. No princípio dos tempos, os polos eram múltiplos e moventes. Uma bola de matéria meio mole meio fofa emanava uma grande energia e movia, e movia. Tinha por superfície uma membrana lustrosa como de uma perereca inchada, bastava apertar para romper. Até que as Entidades vieram e desejaram: uma ilha, uma terra, um norte, estrelas, brilhantes. Lá do alto do céu perfuraram a membrana, e tudo se apertou a tal ponto que ela rompeu, soltando um grande jato. A massa mole fugiu e em sua fuga nasceu um grande rio. As águas tumultuadas deste rio correram até virarem oceanos entre ilhas, que se cristalizaram em areia e pedra. No alto da Grande Montanha, surgiu a primeira das Moradas, a Morada da Copa das Árvores, de onde os espíritos-pássaro brotaram da fruta-pão. As Entidades puderam então deixar sua Morada Celeste e passaram a visitar o novo mundo sempre que podiam fugir do inverno. Muitas e muitas eras depois, quando o norte havia já se firmado como cima, os foragidos das trevas do ocidente retomaram expedições ao sul em busca de si mesmos.

Ciclo 2024, uma grande imprudência causou uma intempérie que levou a outra descentralização magnética. Caminhantes tornados cegos pela vertigem límpida do horizonte. Abriram o coco e a noite escapou. A seca chegou ao sul local. Com ela, a hidrosolidariedade. Houve até quem desse porto para quem não tinha mar.

2101 da era Pop: repetiu-se. Comeram a fruta. Mordiscadas nas camadas de carne alcançam o osso espinhoso. Foi quando uma cortina de desumanidade maior que os mares caiu sobre todo o mundo. O urso agarra o touro pela longa cauda. A base tão fraca leva a pirâmide ao colapso. Fim da soberania do metal, uma nova era de tempestades elétricas teria começado. Milhões de toupeiras revelarão uma precoce primavera através de uma corrente em blocos, despertando a Entidade das profundezas.

Desde então, os nortes e os suis se confundem. Cada um tem o seu, como ímãs de bolso, e GPSs devem ser recalibrados diariamente. Não há mais separação entre

Céu e a Terra. As Entidades estão aqui e em toda parte, e há até aquelas que se conformam de acordo com as leis humanas e desumanas. Terão desenvolvido adaptações em todos os equipamentos de orientação e posicionamento global, inclusive com uma nova rede de satélites mineradores do tipo Archyd.

“O futuro e o fruto duro,
o passado e o passo dado,
tudo aquilo que não é presente
acontecerá novamente.”

Tradução do glifo-enigma inscrito nas colunas do santuário revelado pela estiagem.

Noite da grande recepção diplomática no Palácio do Rio dos Pedregulhos, quando são esperadas as mais importantes personalidades globais. O Palácio terá sido cuidadosamente preparado por invisíveis serviçais, decorado com grandes obras de arte, tapeçarias antiquíssimas e réplicas de monumentos há muito perdidos em guerras e saques. Em poucos minutos, terá começado a transmissão em rede mundial. Aos poucos, famosas Entidades serão vistas por entre mini explosões de luz. É assim que elas combinam sua cultura de performance com uma pseudo-responsabilidade cultural. Sob a passagem da entrada do santuário, algumas Entidades trocam gentilezas:

20:09

–          Good evening
–          Boa noite
–          I’m glad to see you! It’s been … since …
–          Sim, faz tempo, desde aquele festival no oeste distante, não é? Bom te ver!
–          Isn’t it funny how the global south summit takes place in this north?
–          Achei que pra vocês ocidentais aqui fosse o leste.
–          Yes but no … but yes, well, north by northeast. And what do you mean by “us Westerners”? You are Westerner too, aren’t you?
–          Depende, às vezes sim, mas na maior parte do tempo, sou sulista mesmo.
–          I see …Well, it was really good to see you. I love your shoes, by the way.
–          Gostou? Ah, então são seus, faço questão!
–          Wait, please, not here, there’s no need to.
–          Por favor, eu insisto. Se te agrada, é seu.
–          Oh my, don’t show me your feet, please … oh no, that’s so awkward.
–          Aqui, pegue … isso!
–          I didn’t mean it like that … What about you? You’re barefoot now.
–          Não se preocupe, estão distribuindo havaianas no sponsor’s lounge.
–          E você fica me devendo uma. Tschüßikowski!!

20:24

Good evening ladies and gentlemen, tonight is a very special night. We are here standing right outside The Shrine. Boa noite senhoras e senhores, esta é uma noite muito especial. Estamos todos aguardando a chegada da grande Jaca. It seems that the jackfruit is on its way. Parece que ela já está chegando. In the meantime, let’s talk to some of the stunning Entities present here at this superb palace. Vamos falar com algumas Entidades. Good evening, what a fabulous dress, can I feel it, oh, that looks real good on you, and look at this necklace, my dear, this is a fine piece of work. I’m sure you bought it for half and will sell for double, isn’t that right? Belo vestido, lindo colar, realmente. Lembra muito o colar usado pela primeira-ministra no dia da abolição do dinheiro. E o seu colete cavaleiro? Só me resta dizer: Niiii … alguns acertam, outros nem tanto. Oh, here we have Entities from all around, it is such an fabulous unique event. Para você amigo da poltrona, estas são imagens aéreas internas das nossas exclusivas flybots, ao vivo, com imagens diretas em alta velocidade a partir dos assentos, lustres e até dos talheres, não perca! We will be back with you shortly, stay tuned.

21:01

The Mambo-clown strikes again! O mão-boba passou a mão na jaca do salão. A fruta Juca. Nem puderam meter o pé como manda a tradição. Quando ele tiver terminado de comer a jaca, a reciprocidade já terá sido selada sem interferência. Meio desigual, assim de mão-beijada. A dádiva dada, um comércio de perdas que com perda se ganha. Hoje é hoje e amanhã é tarde demais. A fruta-casa, habitada. A casa-corpo, desmilinguida. Tudo fica mais úmido. A fruta terá apodrecido tudo ao seu redor. Até mesmo a pintura, que sobreviveu a grande intempérie, não sobreviverá ao “fruturo”. Espiralada gira a descascada da laranja. Tudo permanece girando. A massa informe desnorteada, a bebida segue jorrando no salão.

Assim foi, assim será.

Nota: em português, não há “future perfect”, o tempo mais próximo é o “futuro do presente composto”.
Texto: Kadija de Paula, Maíra das Neves e Pedro Victor Brandão
Tradução: Kadija de Paula e Maíra das Neves
Revisão: Thais Medeiros
Agência Transitiva, Rio de Janeiro, março 2015. http://agenciatransitiva.net
Este texto é parte integrante da obra “Entity” de Antje Majewski na exposição “Future Perfect”, Memorial do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, maio de 2015, e Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo, Pelotas, Brasil, setembro de 2015.